Um curto passeio de carro a partir do centro de Porto Seguro leva à Reserva da Jaqueira, onde pataxós aguardam os visitantes. Na entrada da reserva, que faz parte da Aldeia Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, o jovem Cauã dá as boas-vindas: "Auiry (bom dia)". Numa picada aberta pela mata vai mostrando algumas espécies à beira da trilha, entre elas, a piaçava, aquela das vassouras, usada também em brincos e colares, e o que eles chamam de borra, e a palha que recobre as casas (kijemes).
- Os pataxós falam o patxohã - explica Cauã, mostrando outras palavras do vocabulário usado na aldeia.
Mais alguns passos e ele aponta um kijeme. As casas indígenas têm duas aberturas, mostra o nosso guia pataxó. Por uma, a do leste, entra a luz do sol. E a outra está voltada para o oeste, na direção em que o sol se põe.
- Essa abertura leva embora a energia negativa - explica o guia.
Perto dali estão a escola frequentada pelas crianças da aldeia e um caramanchão onde os visitantes assistem às representações do ritual de agradecimento, realizado diariamente, no fim do passeio, pela manhã ou à tarde.
- Agradecemos a Niamissum (Deus) pelos visitantes e por ter deixado a terra e os elementos da natureza para os índios - diz a índia Nitinauã, uma das três líderes da reserva.
Além de receber uma parcela dos turistas que lotam as praias de Porto Seguro, os índios da Jaqueira também são visitados por grupos escolares. Lá, os estudantes são apresentados às tradições pataxós, como jogos indígenas e brincadeiras com arco e flecha, e fazem uma refeição (manguti ou mangute), preparada na cozinha comunitária: peixe assado à moda.
Na horta, os pataxós cultivam mudas para o replantio da mata e ervas medicinais: capim santo (calmante natural), alfavaca, babosa (bom para os cabelos e anti-inflamatório natural). O kijeme do pajé fica ali perto.
Não são muitas no Brasil iniciativas como a da Reserva da Jaqueira, onde uma comunidade indígena encontra no ecoturismo o meio de sobrevivência econômica. Modelos semelhantes - como o da Reserva do Tupé, no Amazonas, em atividade há dez anos, e da Reserva Kaingang Iraí, no Rio Grande do Sul, com apresentações do grupo de dança formado por crianças, comidas típicas, exposição e venda de artesanato - lembrados pela professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Maria Rosário Carvalho são considerados positivos:
- Experiências que inserem a atividade turística no âmbito da reprodução da vida cotidiana são as mais adequadas para os povos indígenas, pois não acarretam afastamento significativo entre o trabalho e a vida.
A professora da UFBA Maria Rosário Carvalho conta que a Terra Indígena Coroa Vermelha (uma área de 1.420 hectares às margens da BR 367) foi demarcada a partir de 1996, na praia de mesmo nome, junto à área de 72 hectares da Reserva da Jaqueira, distante cerca de sete quilômetros em direção à mata. No total, a Aldeia Pataxó Coroa Vermelha reúne cinco mil indígenas.
- A Reserva da Jaqueira é um bom exemplo de projeto de ecoturismo, que busca aliar a preservação ambiental da única área de mata da Aldeia de Coroa Vermelha com a atividade turística e, de forma complementar, retomar uma forma tradicional de vida - avalia Maria Rosário.
Na reserva, onde vivem e trabalham cerca de 25 famílias, quem conta a história dos pataxós no Sul da Bahia é Nitinauã.
- Esta área foi demarcada depois de uma disputa com empreendedores imobiliários. Os índios vieram com suas famílias em 1998. Decidimos viver aqui e procurar um meio de sobrevivência. Fundamos a Associação Pataxó de Ecoturismo. Abrimos a reserva para visitas em 1999, o que nos tem ajudado a manter a aldeia - diz Nitinauã.
Esquadra de Cabral
A escola da Jaqueira abriga alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental. A partir do sexto ano, as crianças frequentam a escola indígena de Santa Cruz Cabrália, município vizinho a Porto Seguro.
- Aqui as crianças aprendem português e patxohã, que tem cerca de cinco mil palavras catalogadas. Temos 30 professores pataxós, que já foram alunos na Jaqueira - conta Nitinauã, acrescentando que a aldeia mantém representantes tanto nas administrações municipal quanto na estadual.
Na reserva, onde 40% da mata é primária, os pataxós não podem mais caçar ou extrair nada da Natureza, por isso escolheram viver do ecoturismo. Tudo tem que ser preservado.
- Trabalhamos para preservação da cultura pataxó. Não tiramos nada da reserva além de conhecimento e folhas, ou raízes, mas sem prejudicar a floresta - diz Nitinauã.
Os pataxós, hoje, somam 15 mil pessoas, segundo levantamento feito pela pataxó Anari Braz Bonfim em sua dissertação de mestrado pela UFBA. Eles estão distribuídos em 36 aldeias no sul da Bahia - em Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Prado e Itamaraju - e em seis aldeias em Minas Gerais, nos municípios de Carmésia, Arassuaí, Açucena e Itapecerica. Na região de Porto Seguro, tanto a Jaqueira, que faz parte da Aldeia Coroa Vermelha, como outros 13 grupos pataxós estão nos domínios da RPPN Estação Veracel.
Embora não tenha sido pela presença dos pataxós, mas dos tupiniquins, é exatamente dessa região que se tem os primeiros registros de índios no Brasil, quando a esquadra de Cabral avistou o Monte Pascoal. E, embalada pelo brado de terra à vista, a frota de Cabral se aproximou daquelas terras onde encontraram um porto seguro. Estava descoberto o Brasil e seu povo nativo recebeu os portugueses. O simbolismo da História se mantém com a presença dos pataxós.
- Os pataxós eram nômades. Vieram do centro da mata para a beira da praia, empurrados por desmatamento e perseguições. Em 1861 montaram aldeia no Monte Pascoal. Em 1951, houve um massacre, e a aldeia foi queimada Os que sobraram aprenderam português e se misturaram. Outros voltaram para suas aldeias - conta Nitinauã.
A liderança feminina na Jaqueira é notória, com as três irmãs - Nitinauã, Naiara e Jandaia - no comando. São elas que organizam a visita e o coordenam o contato com os visitantes. Tomam conta da tenda onde funciona a loja de artesanato, com peças em cerâmica, madeira, palha, e até raku, cuja técnica as índias estão aprendendo. Todos os anos, os pataxós celebram sua conquista com a festa de Araguaquissã, no dia 1º de agosto. São três dias de evento. E os jogos indígenas acontecem em abril.
Para conhecer a Reserva da Jaqueira, o visitante geralmente vai com horário agendado pelas agências de turismo locais. Mas também é possível ir em visitas individuais. A Jaqueira está aberta à visitação pública das 9h até as 16h30m. Mas o melhor mesmo é op horário da manhã. Na aldeia, encravada no meio da mata, os índios dormem cedo. Eles vão para a cama logo que escurece. O ingresso custa R$ 35 por pessoa e, nesse preço, está incluído caminhada na trilha, palestra interativa dentro na aldeia e demonstração de como usar arco e flecha. Além da possibilidade de degustar um dos pratos típicos da Reserv a da Jaqueira, o mangute: que nada mais é do um peixe assado em folha.
Quem já provou o acepipe da Jaqueira não se arrepende. O Colégio Miraflores, de Niterói, no Rio de Janeiro, costuma levar turmas dos dois últimos anos do ensino fundamental a Porto Seguro. Na viagem, os alunos da escola aproveitam a oportunidade para visitar a Reserva da Jaqueira, conta Sonia Almeida, diretora da escola:
- Embora os pataxós não sejam nativos da região, ali estão as raízes da História dos índios do Brasil. Levamos recentemente um grupo de 40 adolescentes e tivemos uma aula muito interessante, ouvindo a apresentação da história de vida deles, da cultura, dos hábitos e de todas as tradições. Dos locais que visitamos este talvez tenha sido um dos que tenham maior significado para os alunos, pela natureza dos índios, da simplicidade, da mensagem de preservação. Eles nos deram uma aula de vida.
Além do grupo que mora na Jaqueira, a Aldeia Coroa Vermelha se estende ao perímetro urbano de Santa Cruz Cabrália. A presença dos pataxós em Coroa Vermelha começou em 1970. Ali, o comércio de artesanato tornou-se uma de suas principais atividades econômicas, que sofre a sazonalidade do turismo. Sua área de atuação se concentra no Parque Indígena, que engloba a faixa de praia em torno do marco da "cruz da primeira missa", e onde estão as lojas do centro de artesanato indígena ou Shopping do Índio.
Falta de autenticidade
Pelo alto grau de inserção na sociedade e economia regionais, e por manterem uma convivência bem próxima a áreas urbanas, os pataxós chegam a enfrentar acusações de "falta de autenticidade" - dada a exposição constante à cultura do homem branco ao longo da História, segundo alguns pesquisadores que se debruçam sobre o assunto, acrescenta Maria Rosário, da UFBA.
- No centro turístico da Aldeia Coroa Vermelha, o Parque Indígena, em cujos arredores há residências, a exposição aos turistas é permanente. Essa proximidade acarreta constrangimentos a índios e não índios habitantes de Coroa Vermelha. Todavia, eles buscam minimizá-los, com a tentativa, em geral bem-sucedida, de delimitar a visitação turística ao "marco do descobrimento" e às lojas de artesanato - diz Maria Rosário.
Ainda assim, os pataxós ficam expostos aos riscos das áreas urbanas.
- Temas como tráfico de drogas têm repercutido e causado apreensão nos pataxós da Aldeia de Coroa Vermelha. Os líderes se esforçam para mediar os conflitos, que, ao contrário do que se pensa, não decorrem da atividade turística, mas da dinâmica do sistema de relações interétnicas que se desenvolveu exposto a um conjunto de fluxos culturais, seja de capital, mercadorias, informações e imagens, de distintas procedências e intensidades - conclui Maria Rosário.
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